Em síntese, David Carr (não confundir com Nicholas Carr, crítico da tecno-utopia e autor de, entre outros, "Is Google Making Us Stupid?") lamenta que a ditadura dos algoritmos prejudica a qualidade dos títulos. Ou seja, a Internet e a optimização para os motores de pesquisa obrigam o jornalista -- ou o titulador, figura que existe em muitas redacções -- a produzir títulos descritivos, em vez de criativos.
"Os títulos dos jornais eram antigamente escritos com os leitores em mente, sendo espertos, interessantes ou evocativos. Hoje as headlines existem apenas para serem apanhadas no radar dos motores de pesquisa", escreveu David Carr.
Na realidade Carr apresenta-se um pouco fora dos factos, quer a montante, quer a jusante da sua argumentação. Começo a montante.
Historicamente os títulos dos jornais foram objecto de muitas mutações. Podemos dividir a origem dessas mudanças em 2 tipos: as produzidas pelo homem, na evolução própria do conceito de jornalismo, que também se foi modificando ao longo dos últimos 200 anos; e as forçadas pelas mudanças técnicas na impressão dos jornais.
As mudanças técnicas, como os saltos da tipografia manual para as máquinas de compor e sobretudo da tipografia do chumbo para o offset, obrigaram a maiores alterações na medida em que alteraram os tamanhos e proporções dos títulos. Em geral, encurtaram batidas. Ouvi muito jornalista e diretor de jornal queixar-se da "ditadura do off-set", que "reduzia a criatividade" pois passámos a dispôr de menos batidas para os títulos. O desktop publishing devolveu parte da elasticidade perdida com o off-set ao liberalizar o uso da condensação das fontes.
Independentemente dos condicionalismos técnicos, a obrigação dos títulos interessantes sempre existiu e de alguma forma veio a tornar-se cada vez mais importante. Por uma razão de mercado, mais que qualquer outra: o aumento da concorrência estimulou a produção de títulos capazes de agarrar os olhos do leitor. Isto é especialmente verdade para as primeiras páginas. No interior dos jornais a "regra" aplica-se na mesma, por força do menor tempo de que as pessoas foram dispondo para ler os jornais.
Assim, Carr parece centrado num pequeno período da história dos jornais: o último quarto do século passado.
A jusante, Carr revela menos conhecimentos. É verdade que no universo dos algoritmos um título descritivo leva teoricamente vantagem sobre um título que recorra a figuras de estilo como a ironia. Mas essa vantagem existe independentemente dos algoritmos: por muito que Carr e outros intelectuais não o compreendam, há muita gente incapaz de processar a ironia nos seus cérebros. E essa gente pode não ler o New York Times de papel, mas pesquisa na Internet e pode acabar a ler o New York Times on-line.
Mais: a subida e descida nos motores de pesquisa é condicionada por centenas de outros fatores. Embora seja aconselhável o título descritivo, um título irónico ou inteligente pode surgir no topo do Google, assim se conjuguem outros aspectos da optimização: a relação das palavras do título com as outras palavras da página, as primeiras linhas, a descrição do assunto... e por aí fora, não pretendo dar uma lição de SEO (nem seria a pessoa indicada).
Carr (como tantos outros que descobriram o SEO serodiamente) erra na avaliação. Os títulos descritivos têm outro destinatário. Os olhos dos leitores. A sua capacidade de discernimento numa fração de segundo. O leitor on-line não comprou o jornal, o que é meio caminho andado para ler cada artigo contido nas suas dezenas de páginas. Para o leitor on-line, cada artigo É uma manchete, um jornal, uma peça única, que não está embrulhada num pacote com dezenas de outras. Vai avaliar cada artigo no mostruário, na "banca virtual", antes de clicar para o ler.
É por isso que o título do exemplo clássico que lhe é tão querido, "Headless Body in Topless Bar", funciona tanto on-line como off-line. Não por ser "search-engine friendly" (não é), mas por ser "human-irresistible".
A fechar: o atraso de David Carr na aquisição de conhecimento sobre o meio on-line faz com que centre as suas atenções na optimização para motores de pesquisa quando ela está largamente ultrapassada. Hoje em dia, toda a gente já se optimizou pelo que o SEO perdeu a importância de ser decisivo. A batalha pela atenção -- isto é: a importância do título -- joga-se já há algum tempo nas redes sociais. Ou seja: nas pessoas. Na audiência. nos leitores. Humanos, não máquinas. Cérebros e nervos e contexto cultural, não algoritmos. As pessoas que vão partilhar uns títulos em vez de outros. As pessoas que vão recomendar um artigo em vez de outro.
Isto aliás explica o sucesso do truque que David Carr usou no título da sua coluna no NYT. Não foi nada o SEO que levou "Taylor Momsen Did Not Write This Headline" a ser muito lido, mas o facto de provocar os leitores que, na sua maioria, desconfio, sabem mais sobre SEO que o articulista ;) Aquele truque fez muito sucesso há 5, 6 anos, quando ainda era possível subir nos motores de pesquisa usando truques desse género. Hoje faz parte do legado cultural do meio ambiente reticular. Ou seja: dá um título bem "catchy". Se é que me fiz entender :)